O "Cidadão Boilesen" e a democracia corintiana


por Lúcio de Castro

http://espn.estadao.com.br/luciodecastro/post/192348_O+CIDADAO+BOILENSEN+E+A+DEMOCRACIA+CORINTIANA

“Certas canções que ouço/cabem tão dentro de mim/que perguntar carece/como não fui eu que fiz”? Perdi a conta de quantas vezes já me peguei fazendo a mesma pergunta que Milton Nascimento e Tunai fazem com muito mais poesia nos versos de “Certas Canções”. Tenho o sobressalto sempre que vejo um belo verso, música ou mesmo ideia que expressam exatamente o que gostaria de dizer. Não tirei da cabeça tais palavras ao ler o antológico texto de Pedro Motta Gueiros no Globo sobre a destruição do Maracanã. Mas por deformação profissional, sinto os versos calarem fundo mesmo quando deparo com alguma grande reportagem ou documentário que adoraria ter feito. Como não tive a ideia? Como não fui eu que fiz, repito os poetas.

Fiquei estatelado na cadeira do cinema quando acabou “Cidadão Boilesen”, um dos maiores documentários que já vi. Por tudo. Pela história, pela edição ágil, pelos depoimentos, mas acima de tudo pelo monumental trabalho de reportagem de uma turma que tinha nomes como Chaim Litewski e Pedro Asbeg.
Com minúcias, apuração impecável, contam a história do dinamarquês Henning Boilesen. Um nome sinistro de nossa história, que lamentavelmente chegou a virar rua em São Paulo.

Boilesen é parte ativa e importante de uma das mais páginas mais infelizes e sórdidas de nossa história. Presidente do grupo Ultra, da Ultragaz, era atuante no grupo de boa parte do empresariado de então, anos 60 e 70, que financiava grupos de repressão e tortura no Brasil, ação conhecida como Operação Bandeirantes, a OBAN. Muitos dos que pingaram na caixinha da OBAN, e respondem por sangue na história do país estão por aí, ainda em funções representativas e posando de bacana na nossa sociedade, apesar das mãos e consciências sujas.

Acho sempre curioso quando se trata de um assunto como esses e alguém fala em “revanchismo”. Até onde a semântica aponta, “revanchismo” seria pregar e querer a tortura de quem torturou. Contar a história desses monstros ou querer, como fazem os demais países do continente, que se julguem os crimes cometidos, é apenas passar nossa história a limpo. Pior ainda é quem fala em “guerra” entre dois lados para justificar atos bárbaros e inomináveis, quando estamos falando em tortura, a máquina do estado usada ao arrepio da lei. Que guerra é essa?

Mas Boilesen ia além desses facínoras disfarçados de bons empresários e chefes de família que financiaram a tortura no Brasil. O minucioso trabalho do documentário (disponível nas locadoras) mergulha na mente do psicopata e em sua vida, mostrando que o respeitável empresário não só financiava a tortura, como fazia questão de presenciar e fazer parte da tortura, se deleitando com a barbárie. Espetacular, o filme vai até à Dinamarca, e descobre na escola onde Boilesen estudou que o menino (é, até os monstros foram crianças um dia) já apresentava sinais de se deliciar com o sofrimento alheio desde o primário. Está na ficha escolar de Boilesen. É reportagem de primeira linha, histórica, não por acaso tendo ganho o festival “É Tudo Verdade, 2009”.

Lembrei do primor que é “Cidadão Boilesen” (alô, Márcio Guedes, recomendo muito!) porque vários assuntos correlatos estão na ordem do dia. O surreal debate em torno da novela “Amor e Revolução”, do SBT, condenando o autor por levar tal assunto para a dramaturgia, em mais uma tentativa de se varrer o assunto para baixo do tapete, ou as não menos espetaculares matérias do grande Chico Otávio no jornal O Globo.

Mas acima de tudo lembrei do “Cidadão Boilesen” ao saber que o jovem e talentoso diretor Pedro Asbeg está em mais uma empreitada no cinema. Lutando para contar a história da Democracia Corintiana. Nesse nosso futebol, cada dia mais infestado de cartolas picaretas e assolado pela pausteurização dos discursos de jogadores, contar a história daqueles dias, daquele sonho de democracia corintiana em plena reabertura, conquistada com tanto sangue como vimos, é definitivamente um serviço prestado notável. “Democracia em Preto e Branco” se encontra em tempo de captação, e inaugura uma forma criativa, de doações pequenas de pessoas físicas, que podem ir em www.incentivador.com.br/projeto/cinema/democracia-em-preto-e-branco/103 saber o que está sendo feito, tomar parte disso. A causa e o currículo dos envolvidos no projeto merecem uma clicada.

De qualquer forma, é bom saber sempre que nesses tempos cinzas que se anunciam no Brasil, de restrições com a liberdade de imprensa, achatada pelo poder econômico dos que montaram o Circo-2014, de estado de exceção onde um rolo compressor vai passando pelos mais humildes em remoções criminosas de residências, ainda se produz coisa com qualidade e dignidade.


por Lúcio de Castro

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